Guarani Kaiowá é detido por carregar a própria geladeira no Mato Grosso do Sul



Na manhã de quarta-feira (8), o indígena Guarani Kaiowá Valtenir Lopes deixou sua morada no tekoha – lugar onde se é – Kurusu Ambá, no Mato Grosso do Sul, com a finalidade de levar a geladeira de sua sogra para consertar. Comprado há doze anos no município de Amambai, o aparelho já não dava conta de refrigerar os alimentos e precisava ter o gás trocado, serviço disponível apenas no centro urbano mais próximo, no município de Coronel Sapucaia. No meio do percurso de 30 km entre o tekoha e a cidade, o indígena foi surpreendido por dois policiais que, de arma em punho, o detiveram agressivamente e o conduziram até a delegacia, sob a justificativa de que a geladeira que transportava fora furtada de uma fazenda.

“Eu tava sozinho, eles estavam de carro e com a arma apontada na minha direção. Eu falei ‘o que tá acontecendo?’ e ele disse ‘você tá roubando o freezer da fazenda!’ e me bateu duas vezes com o revólver. Fiquei quieto, tremendo, fechei minha boca, fazer o que, né? Eles deram um tiro embaixo da uma perna, mas eu levantei e não pegou. Prenderam o carro e o freezer, que ainda estão na delegacia”, relata o indígena.

“Eu nunca, desde criança, desde pequenininho, roubei ninguém. Eu não sei como que aconteceu uma coisa dessas comigo, foi a primeira vez. Fiquei com medo. Desde que eu nasci, minha mãe e meu pai me ensinaram a não roubar”, continua o Kaiowá.

Chegando na delegacia, o indígena detido foi colocado numa cela, onde conta ter permanecido cerca de cinco horas, das dez da manhã até as três da tarde, quando finalmente os familiares e uma liderança do tekoha conseguiram convencer os policiais de que não se tratava de um furto e que a geladeira era própria.

“Nós chegamos à uma hora da tarde e ficamos até as três horas para sermos atendidos. Tivemos que insistir muito tempo para atenderem a gente, e a família ficando desesperada”, relata Ismarth Martins Guarani Kaiowá, uma das liderança do tekoha que acompanhou os familiares de Valtenir à delegacia.

“Falaram para nós que ele foi denunciado pelo roubo da geladeira e que amanhã já iriam encaminhar ele preso para [o presídio de] Amambai. Aí esperamos, falamos com Funai, denunciamos ao Ministério Público que estavam criminalizando ele. A agressividade foi muito horrível quando prenderam ele, atiraram, quase acertaram as pernas dele”, continua a liderança Kaiowá.

Desfeito o erro e comprovada a improcedência da denúncia, o indígena foi liberado e levado para realizar o exame de corpo de delito. Os policiais que conduziram o indígena até o local do exame foram, justamente, os dois que o haviam abordado agressivamente, e ele conta que foi coagido a não se manifestar sobre as agressões.

“Os policiais que me bateram foi que me levaram pro hospital. Me disseram que não podia falar que eles tinham me batido, que se eu falasse eu iria ficar preso. Aí eu fiquei calado, igual mudo, durante todo o exame”, conta Valtenir.

Sem demarcação, contexto é de violência constante


O tekoha Kurusu Ambá é uma área de retomada no sul do Mato Grosso do Sul, na região de fronteira com o Paraguai, e sofre constantemente com a pressão e os ataques paramilitares de fazendeiros e jagunços. Em 2016, foram registrados quatro ataques a tiros em seis meses, incluindo um ataque ocorrido poucas horas após a Relatora Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos e as Liberdades Fundamentais dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, ter visitado o acampamento onde vivem os indígenas.

Trata-se de um dos muitos territórios retomados pelos indígenas Guarani e Kaiowá no contexto da luta pela demarcação de suas terras tradicionais no Mato Grosso do Sul. A negligência do Estado em demarcar as terras indígenas na região resulta na perpetuação dos acampamentos, onde os indígenas enfrentam constantemente a fome e a violência.

Expulsos de suas terras, os Guarani Kaiowá nunca desistiram de retornar a seu território sagrado. A retomada onde atualmente existem três acampamentos começou a ser estabelecida em 2007, ano em que duas lideranças foram assassinadas. Entre 2009 e 2015, mais dois indígenas foram mortos em Kurusu e, em 2016, um acampamento chegou a ser totalmente queimado por jagunços.

Kurusu Ambá foi um dos tekoha incluídos no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) estabelecido pelo Ministério Público Federal (MPF) com a Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2007. O TAC determinava o ano de 2009 como prazo para a conclusão de diversos Relatórios Circunstanciados de Identificação e Delimitação (RCID) no Mato Grosso do Sul, primeira etapa da demarcação de uma terra indígena.

Apesar da multa de mil reais por dia de atraso e da dívida milionária que a Funai vem acumulando desde então, o estudo de Kurusu Ambá, assim como a maioria dos contemplados pelo TAC, foi interrompido em 2010, o que agravou ainda mais os conflitos e o preconceito sofrido pelos indígenas.

“Para sair do tekoha e ir a qualquer lugar, temos que passar pelas fazendas. Eles monitoram nossa saída e entrada da retomada, os fazendeiros aqui da região não gostam de nós e tem essa perspectiva de criminalizar e perseguir”, afirma Elizeu Lopes, liderança de Kurusu Ambá e irmão do indígena injustamente detido.

0 comentários: